De São Paulo a São Miguel, um roadtrip nas trilhas dos Sete Povos das Missões

Em São Miguel das Missões, a esperada emoção frente a epopéia dos Guaranís

Nos numerosos lugares inesperados que fazem a força do turismo brasileiro, tem um que sempre foi muito emblemático, tanto por sua beleza arquitetural quanto pela importância que ele merece na história do Brasil. Talvez mais ainda pelo acesso complicado, fora das rotas tradicionais e longe dos aeroportos que despachem os grandes fluxos de turistas e de viajantes. Declarada patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO, capital dos antigos Sete Povos das Missões, São Miguel das Missões é principalmente acessível de carro, a mais de 1500 quilômetros de São Paulo, virando assim naturalmente o destino mor e o ponto máximo de um roadtrip para o Sul do Brasil.

Saindo de São Paulo, prontos para 3.472 km de roadtrip

Mesmo para quem tem experiências anteriores do Norte ao Sul do Brasil, uma viagem de carro em família é sempre um grande desafio.  Para percorrer com segurança até 600 quilômetros por dia, é melhor reconhecer o caminho antes de iniciar a viagem, definir cada etapa, escolher  as visitas e as surpresas que vão agradar a todos. Pela atratividade dos imperdíveis, a qualidade da hospedagem, as experiências exclusivas e as distancias a percorrer, foram escolhidos Curitiba e o trem de Morretes, as Cataratas de Iguaçu, as ruinas jesuítas de São Miguel das Missões, Gramado (e o Castelo Saint Andrews), as praias de Florianópolis  e, para atender aos pedidos de uma filha de oito anos, o parque Beto Carreiro.

O olho do Museu Niemeyer, imperdivel experiência em Curitiba

Se Curitiba era programada como uma simples parada tanto na ida que a volta, a cidade modelado pelo talento de Jaime Lerner mostrou que merecia muito mais. Assim, mesmo com a neblina, ninguém pode ser decepcionado pela descida de trem para Morretes, as vezes assustadora, inclusive dentro do vagão imperial, seguindo as espectaculares trilhas pregadas na montanha pelo engenheiro baiano André Rebouças, e inauguradas em 1885 pela Princesa Isabel. E a própria cidade sabe muito bem seduzir o visitante. Curitiba oferece um banho de cultura, no agradabilíssimo Jardim Botânico ou no estonteante Museu Oscar Niemeyer, e uma surpreendente gastronomia em restaurantes como o excepcional Manu Bufara ou o “trendy” Nomade do hotel Nomaa.

Em Iguaçu, a beleza das cataratas no cartão postal do lado brasileiro

Deixando essa cidade modelo, o “roadtrip” seguem as paisagens ordenadas levando as Cataratas de Iguaçu, uma das maravilhas do mundo moderno cujas imagens impactantes abrem o filme “A missão” que inspirou essa viagem. Num ano de muita chuva, com mais de 8.000 m3 de vazão por segundo, mereciam mesmo o seu nome de Y- Guaçu, águas grandes, e precisa mesmo de três dias para se impregnar da força e da emoção do local. Do lado brasileiro, frente ao incontornável Hotel das Cataratas, aproveita-se o cartão postal com a visão global, caminhando com os turistas, os coatís e os tejús, ou navegando ensopado (mas feliz) embaixo das cachoeiras.  Do lado argentino, um outro dia é necessário para aproveitar a longa caminhada que leva até o ponto máximo, a Garganta do Diabo, numa trilha que esbanja beleza e emoções na intimidade das águas. Com um dia a mais, ainda do lado argentino, uma ida até as ruinas jesuítas de San Inácio oferece um primeiro contato com o mundo dos Sete Povos das Missões.

Na entrada de São Miguel, a cruz missionária e o grito gaúcho de Sepé

Depois de dois dias na BR158 marcados pelo infinito dos campos de trigo e pela boa surpresa da etapa acolhedora de Frederico Westphalen, a emoção é grande na chegada na pequena cidade de São Miguel das Missões. Mesmo abandonada em 1756, depois da expulsão dos Jesuítas e da derrota da resistência guaraní de Sepé Tiaraju, a catedral de São Miguel Arcanjo ergue-se hoje como a maior testemunha da fabulosa epopéia.  Os eventos são muito bem contados num som e luz heroico, mas, pedagógico e fiel, e são mantidos vivos por pesquisadores, pelos moradores da cidade e pelos sempre presentes descendentes dos Guaranís. Esses acontecimentos não somente marcaram a história dos povos da América do Sul mas, contribuíram de forma decisiva a cultura gaucha nos quatro países da região. E nos dois principais hotéis da cidade, a charmosa Pousada das Missões e o impressionante Tenondé Park Hotel, se nota a mesma vontade de mostrar uma experiência arquitetônica-cultural única.

O zoológico de Gramado permite um novo relacionamento com os animais

Cercada pela imponência da Serra Gaucha, imprescindível destino turístico para quem viaja para o Sul brasileiro, Gramado sabe oferecer ao viajante múltiplos atrativos: moradores acolhedores, urbanismo seguro, atrações para toda a família, e numerosas opções de hospedagem, das mais econômicas do centro borbulhante até até o luxuoso e exemplar Castelo Saint Andrews. Mesmo para quem já visitou varias vezes a cidade na ocasião de seus grandes eventos – sendo o Festuris o carro chefe para quem trabalha no turismo, há sempre mais para descobrir, por exemplo o charmoso, detalhista e sonhador universo do Parque Minimundo da família Hoppner, ou um parque zoológico muito brasileiro e sem grades que merece mesmo ter sido classificado pela Trip Advisor como o melhor do continente.

Beto Carrero com as cores e os sabores da Bavária

De Gramado até Florianópolis, a RS 235, a RS 020  e a BR 453 ( a “Rota do Sol”)  desenham suas curvas no meio das paisagens do bioma da mata atlântica  até chegar as praias do litoral catarinense e passar a ponte levando a antiga Desterro.  Se as pesadas chuvas podem estragar um pouco a estadia, uma única manhã de sol é o suficiente para aproveitar a praia de Daniela e saudar os sagui-de-tufos-pretos, macaquinhos invasivos que cercam o seu acesso, fazer castelos de areia e mergulhar numa água  que talvez não é tão fria assim. Mas é 120 km mais ao Norte que  as crianças colocam o ponte máximo desse roadtrip no Sul: o Beto Carrero World. Acompanhando a alegria de um parque com muita atrações, organizado como os maiores concorrentes internacionais, e oferecendo aos adultos o ambiante das tradições germânicas dessa região de Santa Catarina.

No meio dos campos de trigo, a estrada para a aldeia Guaraní

Com o imenso potencial de crescimento que o turismo domestico tem no Brasil, os  “roadtrips” para o Sul do pais devem com certeza ter um lugar de destaque. A qualidade da malha rodoviária, a segurança pública,  a larga oferta de hospedagens e de restaurantes de todos os preços, os múltiplos atrativos para gurizada, e um rico acervo cultural muito bem valorizado trazem a toda família as experiencias inesquecíveis de uma viagem transformadora.

Jean Philippe Pérol

Os 3.472 km do segundo roadtrip em família

As hospedagens escolhidas para essa roteiro foram as seguintes:

Encontros com amigos são grandes momentos da viagem.

Em São Miguel das Missões José Roberto de Oliveira nos fez a honra de compartilhar um pouco do seu imenso conhecimento sobre a historia dos Sete Povos e da cultura guarani.

Em Gramado, a equipe da Marta Rossi e de Eduardo Zorzanello deu preciosas dicas e nos recebeu em família.

 

Em Al Ula, os moradores acompanham um novo destino de luxo, arte e cultura

 

A sala de concerto, ícono arquitetural de Al Ula

Outrora cidade proibida – os seus habitantes teriam sido malditos por duvidar das palavras do profeta-, capital de uma região distante com uma economia tradicional baseada no cultivo de támaras ou de cítricos e  na criação de camelos, Al Ula parecia a bela adormecido da Arabia Saudita . Suas riquezas arqueológicas de Madain Saleh e de Hegra, heranças milenárias dos nabateanos, já eram conhecidas e tombadas pela UNESCO desde 2008,  mas atraiam somente alguns poucos turistas vindo de Riade ou Jeddah, sem impacto significante sobre a vida quotidiana e as perspectivas profissionais dos 65.000 moradores.

Turistas num restaurante de Al Ula

Tudo mudou a partir de abril 2016, quando o principe herdeiro Mohamed Ben Salman lançou o projeto Visão 2030, que dava a Arabia Saudita nova perspectivas de desenvolvimento, fazendo do turismo e dos lazeres uma prioridade para sair de uma economia exclusivamente ligada ao petróleo. Com um impressionante orçamento de US$ 35 bilhões, foi criada a Comissão real de Al Ula, com a missão de transformar a região em destino turístico de alto luxo focado em arte, cultura e esporte. O projeto deveria ser integrado no ecosistemo local e respeitar a sustentabilidade, com o objetivo de receber em 2030 um milhão de turistas de alto poder aquisitivo sem cair no overturismo.

Shahad Bedair, uma das primeiras mulheres sauditas  guia de turismo

A grande ambição do projeto é a criação de empregos e de oportunidade para a população local. São previstas 38.000 vagas, e já são milhares de moradores que foram contratados não somente como vendedores, recepcionistas, guias de turismo, motoristas, mas também como gerentes ou executivos – a própria Comissão já conta com dois terços de funcionários locais. Para poder atender a procura de pessoal especializado, milhares de bolsas e de estágios de formação foram realizados. Foram cursos de línguas, formações especializadas em hotelaria, arqueologia, agricultura ou gestão sustentável na Europa ou nos Estados Unidos. E para gerenciar o Parque, vários rangers foram mandados estudar dezoito meses na Tanzania.

Os agricultores aproveitam também o projeto

Mesmo se o projeto ainda têm muitas realizações pela frente – foram abertas 1000 dos 4000 quartos de hotéis previstos até 2030-, a vida dos moradores já mudou. Com o turismo, mais oportunidades profissionais, especialmente para jovens diplomados e para mulheres, mais encontros com visitantes, sauditas ou internacionais, mais opções de lazer com festivais culturais, exposições de arte ou competições esportivas, estão trazendo uma abertura excepcional que crescerá com o sucesso.  Empresários locais estão construindo novos bairros de casas e apartamentos  nas áreas sul da cidade, e na área norte, no vilarejo de Dadan, vai ser aberto um centro de ensino e pesquisa arqueológico. O impacto do projeto em Al Ula vai assim muito alem do turismo, trazendo aos moradores renda, qualidade de vida e abertura para o mundo.

O turismo está mudando a vida na antiga cidade

A “baguette” entrando no patrimônio mundial, justo homenagem ou clichê redutor?

Macron chamou a baguette de magia e perfeição do quotidiano

Na cidade de Rabat (Marrocos), na sua primeira reunião presencial depois de dois anos de pandemia, o Comitê da UNESCO colocou a icônica “baguette” parisiense na lista do patrimônio culturel imaterial da humanidade.  A decisão homenageou um “savoir faire” dos padeiros franceses, destacando todas as fases da fabricação, desde os quatro ingredientes (farinha, água, sal e levedura), até a fermentação, o preparo e o cozimento varias vezes ao dia em pequenos fornos.  Uma receita de extrema simplicidade com a qual cada artesão padeiro consegue chegar a um produto único, fruto da sua técnica, dos produtos selecionados, bem como da temperatura e da humidade do seu local de trabalho.

A baguette modificou até as prateleiras das padarias 

A UNESCO lembrou o impacto da baguette na vida social. Seis bilhões são fabricadas e compradas cada ano, cem por cada Francês, com práticas de consumo diferentes dos outros pães.  A baguette tem que ser produzida e comprada cada dia, e mesmo duas vezes por dia, para guardar seu frescor. Sendo fina e comprida (uma media de 65 cm de comprimento para um diâmetro de 6 à 7 cm), ela é fácil de transportar (sendo a mão, num saquinho ou numa folha de papel), e tem variedades suficientes para cada parisiense escolher a sua: clássica, tradição, moulée, viennoise, bem passada … Algumas padarias aceitam de vender meia baguette, outras produzem a sua irmã menor (a “ficelle”) ou seu irmão maior (o “batard”).

A padaria do austríaco Zang, um dos possíveis pais da baguette

Na sua decisão, os sábios do Comitê não oficializaram nenhum das lendas urbanas sobre a origem da baguette: pão de forma oval já produzido em Paris no inicio do século XVII, evolução do “Pain Egalité” votado pelos revolucionários de 1793, criação dos padeiros de Napoleão para ser mais fácil a transportar pelos soldados que a tradicional “miche” redonda e mais pesada, lançamento inspirado do austríaco August Zang na abertura da sua padaria parisiense em 1839, ou pedido dos construtores do metrô de Paris que queria um pão que pudesse ser compartilhado sem precisar da faca também usada pelos operários para brigas mortais.

Uma da três padarias de Auzances, vilarejo da família do autor

Qual que seja a sua origem, a baguette virou um ícone de Paris a partir dos anos 20, quando os turistas internacionais – especialmente os ingleses e os estado-unidenses – se apaixonaram por esse pão sofisticado, tão diferente da “miche” pesada e grosseira que se comia no campo.  Foram eles que fizeram da baguette um símbolo da França eterna tão forte (mas tão saudosista) que Edith Piaf, a boina, o camembert e o salsichão. Se a delegação francesa no Marrocos festejou a decisão da UNESCO, os criticas em gastronomia foram mais cautelosos. Muitos acharam que a distinção deveria ter sido mais específica, somente a baguette tradição (com a levedura tradicional), com uma escolha de ingredientes mais rigorosamente codificada, merecendo ser destacada.

Os 76 pães da famosa carta de Poilane

Outros especialistas levantaram que muitos outros pães eram mais significativos da excelência das padarias francesas, tanto pelas suas qualidades gustativas que pelas suas raizes nos “terroirs” de muitas regiões onde 76 tipos de pães contribuam a riqueza cultural local, incorporando novidades trazidas pelo bio e pela procura crescente pela qualidade. Um reconhecimento de todos teria sido importante frente as ameaças que pesam sobre o setor. Nos últimos 50 anos, 20.000 padarias fecharam na França, outras viraram simples distribuidoras de pães industrializados. Na hora do bio, da qualidade e da excelência francesa, a França deve com certeza comemorar a decisão da UNESCO, mas deve também lembrar que a baguette é o fruto de técnicas, de tradições, de ingredientes, e de criatividade da padaria francesa, junto com muitos outros pães para ser comemorados.

Jean-Philippe Pérol

 

As duas memórias de Montmartre

Dominando Paris, o Sacré Coeur de Montmartre

Dia 12 de Outubro, a Câmara Municipal de Paris aprovou um pedido de tombamento da basílica do Sacré Coeur de Montmartre. Aparentemente técnica, com o objetivo de conseguir verbas do governo para as obras de restauração do edifício, a decisão reabriu uma violenta polémica. Deixando do lado a discussão em volta do estilo romano-bizantino escolhido pelo arquiteto Paul Labadie, que venceu a licitação frente a mais de 70 concorrentes, a briga é antes de tudo política, fruto das divisões entre direita conservadora e esquerda revolucionaria que começaram em 1789 e culminaram em 1871 com a repressão sangrante da Commune de Paris.

Salvar Roma e a França, a esperança de Legentil e Fleury

Se foi no século III que o Monte dos Martírios ganhou esse nome com a morte do bispo São Dênis, a história do Sacré Coeur começou en dezembro 1870. Convencido que a derrota dos exércitos franceses frente aos alemães era  a consequência  dos pecados acumulados pelos franceses desde a Revolução, dois católicos sinceros, Alexandre Legentil e Hubert Rohault de Fleury fizeram a promessa de construir em Montmartre uma igreja consagrada ao Coração de Jesus. Financiado por pequenas e grandes contribuições de quase dez milhões de fieis, o santuário traria o perdão divino e acabaria com as desgraças da França.

O Montmartre dos moinhos, com os canhões da Commune

A guerra civil atrasou o projeto, e ampliou os antagonismos. Estes ficaram mais fortes ainda quando o governo conservador escolheu de dar para construção o exato local onde o povo de Paris tinha iniciado o seu levante. Desde então, o Sacré Coeur ficou associado a ordem moral e a repressão social. Durante toda a construção – que demorou 48 anos-, políticos e historiadores se dividirem entre aqueles que apoiavam mais um voto de fé da França “filha primogénita da Igreja” e outros que achavam que a basílica era uma afronta a memória dos 30.000 parisienses massacrados durante a semana sangrenta de maio de 1871, um rastro através os monumentos de Paris, até os últimos fuzilamentos no cemitério do Père Lachaise.

Frente a basílica, a praça Louise Michel

A decisão da Câmara Municipal de Paris reacendeu o debate entre as duas Franças. Mas mesmo com a ferrenha oposição da esquerda e a incerta abstenção dos ecologistas, o Sacré Coeur é agora monumento historico. Para o reitor da basílica, os 11 milhões de visitantes vão poder aproveitar a decisão com varias melhorias, incluindo a abertura de novos acessos para pessoas com deficiência e a renovação do órgão. Outros projetos deveriam também ser anunciados em breve, ajudando Montmartre a ser inscrita no patrimônio mundial da UNESCO. E para reconciliar ambas as partes, a prefeitura lembrou que a área tombada incluiu a praça Louise Michel, homenagem a mais emblemática heroína da Commune de Paris.

Jean-Philippe Pérol

O Sacré Coeur dominando Paris

Em Nice, o pioneirismo no turismo virando patrimônio da UNESCO

A orla marítima da cidade é o coração do projeto

Na lista dos 34 sítios promovidos pela UNESCO no último dia 27 de Julho, constam não somente o jardim Roberto Burle Marx do Rio de Janeiro, legado do paisagista brasileiro que criou o conceito de jardim tropical moderno, mas  também três maravilhas culturais da França. Viraram assim patrimônio da humanidade o farol de Cordouan ,- construído perto de Bordeaux, na foz do rio Gironde, no final do século XVIII-, a cidade termal de Vichy,- com seus 2000 anos de termalismo e seu urbanismo misturando Segundo Império e Art Nouveau-, e parte da área urbana de Nice, premiada pela sua arquitetura de estância de inverno que nasceu aproveitando o clima e as paisagens excepcionais da Riviera.

A igreja Saint Nicolas num cartão postal de 1932

Trabalhando há 13 anos sobre essa nomeação, o prefeito de Nice, Christian Estrosi, comemorou um evento excepcional, único na historia de “Nissa la bella” pela sua repercussão internacional. Extremamente detalhada, a decisão da UNESCO não se refere a toda cidade, mas exclusivamente as áreas urbanizadas desde o final do século XVIII, bairros onde os primeiros turistas deixaram um rico patrimônio. Eram aristocratas ingleses ou russos, milionários  austríacos ou americanos, que seguiam os passos da Imperatriz Josephine, dos tsars da Russia e da Rainha Vitória, construindo palácios, casas, hotéis ou igrejas, com uma arquitetura cosmopolita original.

O Castelo do inglês (ou Castelo cor de rosa), folia arquitetural de 1856

Icomos, o conselho internacional dos monumentos e sítios que analisou o dossiê, deu a maior importância a definição do perímetro escolhido – que devia ser estritamente ligado ao desenvolvimento turístico da cidade-, e aos esforços bem sucedidos pela sua preservação – garantido pelos compromissos da prefeitura nesse sentido. Foi necessário fortes apoios dos países participando do voto – especialmente da Russia, muito ligado a essa página da história de Nice– para chegar ao compromisso final, a escolha de uma área de 522 hectares de património mundial cercada de 4.243 hectares de áreas protegendo a coerência arquitetural e urbanística do conjunto.

A beleza natural do parc da Colline du Château

Para inscrever Nice na lista do Patrimônio mundial, a UNESCO destacou seu pioneirismo e seus atrativos específicos. A cidade aproveita uma paisagem excepcional e um clima ensolarado. O urbanismo  aproveita harmoniosamente a localização entre mar e montanhas, com avenidas e passeios concebido desde 1831 para atrair os visitantes. Nice foi pioneira em “vegetalizar” suas ruas, plantando arvores e palmeiras, bem como um imenso jardim botânico. O patrimônio arquitetural impressiona, tanto pelas origens italianas, russas, ou inglesas, que pela diversidade de estilos, neo-classicismo, Art Nouveau, Art Déco ou modernismo, que esbanjam um peculiar arte de viver, um exotismo e um bem estar que sempre fascinou turistas e artistas do mundo inteiro.

A praça Massena, o “filho querido da vitória”

A área inscrita pela UNESCO inclui desde uma parte da cidade medieval, com o Cours Sleya, os Ponchettes, a Opera, e toda a orla até a icônica Promenade des Anglais, e o Cours Albert 1ero. Não podia deixar de fora a famosa Place Massena – nome do general mais querido do Napoleão, o “filho querido da Vitória”. E pela outrora Avenida da Vitória, hoje chamada de Jean Medecin, chega-se a Basílica Nossa Senhora da Assunção e, depois de entrar na Avenida Thiers, a estacão de trem e a Basílica russa de Saint Nicolas. A UNESCO aceitou também de incluir alguns pontos mais periféricos como o bairro de Cimiez, suas arenas romanas e seu (ex) hotel Excelsior Regina que hospedou três vezes a Rainha Vitória.

Na praça Garibaldi, a estátua do herói dos dois mundo

Gauchos e catarinenses  lamentarão (juntos com uruguaios, italianos, franceses e amantes da Liberdade do mundo inteiro) que a praça Garibaldi não foi inclusa nessa área. Mesmo com muita insistência da delegação francesa, os especialistas alegaram que, mesmo batizada do nome do herói dos dois mundos, a praça foi inaugurada em 1773, seja antes da era do turismo de estância de inverno que a UNESCO premiou. O prefeito prometeu porem que vai tentar uma redefinição do perímetro premiado até o próximo mês de dezembro. Candidata a capital europeia da cultura em 2028, Nice terá ainda muitas ocasiões de prestigiar o mais famoso dos seus filhos.

Jean-Philippe Pérol

Arábia Saudita nos grandes destinos turísticos mundiais de 2030?

Madain Saleh, a Petra do sul onde nasceu a escritura árabe

O acordo assinado o mês passado pelo Diretor Geral de Cruise Saudi, e o Presidente de MSC, vai dar um impulso espetacular aos cruzeiros nessa região, dando ao MSC Magnifica a possibilidade de zarpar de Jeddah, segundo porto do Oriente Médio, cidade histórica tombada pela UNESCO e ponto tradicional de entrada dos peregrinos para Meca. Um segundo navio, o MSC Virtuosa, operando no Golfo Pérsico, vai enriquecer os seus itinerários com escalas em Damman, porto dando acesso ao oasis de Al Ahsa, um outro sítio inscrito no patrimônio mundial da UNESCO. Para a temporada 2021/2022, as duas empresas esperam receber até 170.000 novos turistas.

Nos arredores do porto de Al Wajh, o Mar Vermelho ainda virgem de turistas

Os roteiros do MSC Magnifica terão como ponto alto a visita do oasis de Al Ula, também tombada pela UNESCO. A vinte quilômetros do vilarejo, os surpreendentes atrativos da região são os 138 túmulos de Maidin Saleh, segunda capital dos Nabateus, as vezes chamada de “Petra do sul”, antiga capital troglodita de um reinado citado na Bíblia, etapa da “rota do incenso” que ligava a Palestina com o Hejaz. O acesso é possível pelo porto de Al Wajh, famoso pelo seu centro historico e seu litoral, onde os turistas levados pela MSC poderão desembarcar para descobrir esse impressionante e ainda desconhecido acervo da humanidade.

O projeto de hotel de Jean Nouvel em Sharaan

Toda região de Al Ula é o centro de um grande projeto de parque natural, arqueológico e turístico. Com o apoio da França, a Arábia Saudita está investindo na renovação desse conjunto excepcional, incluindo infra-estruturas rodoviárias, ferroviárias  e hoteleiras. O projeto integrou uma extraordinário hotel troglodita desenhado pelo arquiteto francês Jean Nouvel. Totalmente integrado nas paisagens, com 40 quartos e três vilas esculpidas nos morros, varandas escondidas, e um imenso pátio central, deve abrir em 2024 e virar um dos símbolos do sucesso das ambições turísticas sauditas.

A Kaaba e o complexo hoteleiro de Meca com seu “Big Ben” gigante

A Arabia Saudita já é o vigésimo quinto destino turístico mundial, e recebeu em 2019 20 milhões de turistas internacionais – três vezes mais que o Brasil-, um pouco mais da metade sendo peregrinos indo para Meca.  Pouco conhecido fora do mundo muçulmano, esse turismo religioso foi também profundamente transformado nos últimos anos. Com grandes hotéis de luxo com vista direta sobre a Kaaba, o complexo de Abraj Al Bait revolucionou as infraestruturas locais e as receitas turísticas da cidade santa que chegam hoje a USD 4100 por pessoa. Segundo as autoridades locais, essa evolução vai seguir com o crescimento do número de peregrinos, projetado em 30 milhões para 2030.

O projeto Coral Bloom, luxo, meio ambiente e novas tendências

As ambições do turismo saudita abrangem também o turismo balneário, com a abertura de 50 resorts em 22 ilhas e 6 pontos do litoral, incluindo campos de golfe, marinas, e centros de lazer. O projeto mais espetacular, Coral Bloom, inclui 11 hotéis de alto luxo  concebido pelo estúdio Foster & Partners que está sendo desenhado para valorizar o extraordinário meio ambiente da ilha de Shurayrah. Sem prédios, construídos com materiais leves, com design incorporando as últimas tendencias do turismo pós covid, os estabelecimentos vão oferecer uma experiência inovadora de luxo responsável e  ecológico. Com aberturas programadas a partir de 2022, serão uma etapa chave para colocar a Arábia Saudita nos grandes destinos turísticos mundiais em 2030.

Jean-Philippe Pérol

Veneza, parabens para os seus 1600 anos!

A tradição, ou a lenda, ensina que Veneza foi fundada no dia 25 de março de 421. Três cônsules, mandados pelo prefeito de Pádua, teriam iniciado neste dia a construção da igreja de San Giacometo do Rialto, ainda hoje considerada uma das mais antigas da cidade mesmo se datando provavelmente do século XI. Os historiadores são mais divididos, alguns escolhendo 452, quando a lagoa foi o refúgio dos sobreviventes da destruição da cidade vizinha de Aquileia pelas hordas de Átila, outros preferindo 697 quando o patrício Paulicius foi eleito e reconhecido pelo então soberano bizantino como primeiro “doge” (duque en lingua veneta).

San Giacometo do Rialto, lendário lugar de fundação da cidade

As comemorações dos 1600 anos começaram dia 25 de março na basílica San Marco, com uma missa celebrada pelo Patriarca Francesco Moraglia – retransmitida on-line para respeitar as rígidas normas sanitárias da Itália. As 4 da tarde, os sinos de todas as 84 igrejas da cidade tocaram juntos, e a rede nacional de televisão italiana apresentou um documentário em homenagem a Veneza com músicas, fotos e vídeos ilustrando a peculiar história da Serenissima. A prefeitura anunciou também muitas iniciativas culturais previstas para 2021 e 2022, misturando o virtual com o máximo de presencial se a pandemia deixar.

Os navios de cruzeiros devem agora ancorar fora da cidade histórica

Para seu aniversário, o primeiro presente que Veneza recebeu foi porem a proibição feita aos grandes navios de cruzeiro de entrar no Grande Canal. Anunciada de forma solene pelos ministros da cultura, do turismo, do meio ambiente e das infraestruturas, a decisão  tinha sida tomada em 2012 para “proteger um patrimônio pertencendo não somente a Italia mas a toda humanidade”, mas ainda não vigorava devido aos atrasos na construção de um porto alternativo.  A pressão dos moradores, as exigências da UNESCO, e a emoção provocada por dois incidentes graves em 2019 levaram o governo italiano a encontrar uma solução provisória no porto industrial e a efetivar a proibição.

235 projetos vão comemorar os 1600 anos

Além dos grandes eventos tradicionais como a famosa Biennale ou o Venice Boat Show, com numerosas ideias e propostas vindo não somente dos moradores mas do mundo inteiro, o  Comitê da comemorações dos 1600 anos  já selecionou 235 projetos para serem apoiados pela prefeitura. Nessa cidade que já sofreu do overturismo, mas cuja economia depende completamente dos visitantes, é certo que todos terão que seguir as novas tendências do turismo pós Covid. Um turismo construído com os moradores, mais ligado com os fluxos domésticos, espalhado em todos os cantos da cidade, privilegiando os pernoites e as estadias mais longas. Um turismo mais qualitativo a altura das esplendores que essa cidade mágica oferece a seus visitantes há 1600 anos!

Jean-Philippe Pérol

A retomada pode se projetar sem os excessos do overturismo?

No bicentenário da morte do imperador, a “Rota Napoleão” lembra a lendária epopéia

Em Juan les Pins, o exato lugar onde Napoleão desembarcou

O caminho mais rápido da Côte d’Azur até Paris sempre foi via Aix en Provence, Avignon e o vale do Rio Rhône, mas era na época controlada por milícias monarquistas. Napoleão escolheu então o geograficamente difícil, mas politicamente seguro, caminho dos Alpes  com suas populações republicanas ou bonapartistas, e decidiu chegar a Lyon via Grenoble. A rota Napoleão – um itinerário turístico que foi inaugurado em 1932 no traçado de 1815- é esse ano, junto com a cidade de Ajaccio, o palácio de Fontainebleau e o túmulo dos Inválidos em Paris, e também junto com Liege na Bélgica, Santiago do Chile e, claro, a Ilha de Santa Helena, um dos principais lugares onde está se comemorando o bicentenário  da morte do Imperador.

Em Grand Serre, a floresta desenhando uma águia sob o olhar do Napoleão

Foi antes de Grenoble, que o Napoleão selou a epopéia. No campo do Encontro, ele avançou sozinho na frente das tropas monarquistas e falou “Sou eu! Se tem aqui um soldado que quer matar o seu Imperador, que atire agora”. Tremendo de emoção, os soldados dos dois lados se abraçam nos gritos de “Vive l’Empereur”. O momento histórico é lembrado hoje com uma estátua de Napoleão olhando a águia desenhada na floresta da montanha de Grand Serre. Foi mesmo o Imperador que os habitantes receberam em Grenoble carregando as portas da cidade que o prefeito não queria abrir. Indo dormir na albergue dos Trois-Dauphins, tendo agora um exército de 7000 homens, Napoleão anunciou que chegaria em Paris em dez dias. Encerrava a epopéia da Rota Napoleão, passava a História, começava o turismo. Viva o Bicentenário!

De carro, a pé, a cavalo, de moto, a paisana ou com uniformes da época, cada um pode escolher a sua forma de percorrer a Rota Napoleão

O cuscuz norte africano no patrimônio da UNESCO

O Taj Mahal, maravilha do mundo e do amor

O Taj Mahal, “cochicho de amor no ouvido da eternidade”

« Um cochicho de amor deixado no ouvido da eternidade, isso é o Taj Mahal, teu sonho de mármore, Shah Jahan ». Foi assim que o poeta falou desse mágico mausoléu que o então imperador mogol dedicou a sua esposa Aryumand Banu Begam, a Mumtaz Mahal. Considerado como uma das sete maravilhas do mundo moderno, o Taj Mahal deve ser descoberto com tempo e silêncio, os dois maiores luxos do visitante. Para quem chega em Agra depois de uma viagem cansativa, procurando os clichês tantas vezes reproduzidos, é melhor não se precipitar, e conhecer primeiro a cidade e sua outra grande atração, o Forte Vermelho, impressionante conjunto arquitetural tombado pela UNESCO que domina o rio Yamuna.

A porte do Forte Vermelho

Construído a partir de 1558 em cima de um antigo forte do século XI, o Forte Vermelho cobre uma área de 38 hectares onde o imperador Akbar mandou construir a fortaleza bem como um palácio digno da nova capital do Império. Erguido com a pedra arenita vermelha característica do Rajastão, o conjunto ganhou o nome de Forte Vermelho. Das muralhas da fortaleza, além da curva do rio carregado de barro amarelo, o visitante pode aproveitar a vista de uma pérola branca e rosa cercada de floresta verde. É o momento para descer das torres cor de sangue, subir no tuk tuk, e atravessar o parque para chegar próximo do Taj Mahal.

Visitantes indianos na grande porta do Taj Mahal

Nos arredores do mausoléu, têm mais de cem barracas de lembrancinhas, refrigerantes ou lanches para atender os milhares de turistas – na grande maioria indianos – que visitam o local, seja por motivos religiosos, históricos, ou para celebrar esse imenso amor. Na multidão, muçulmanos e hindus, homens vestidos de branco seguem mulheres de olhos negros cobertas de véus coloridos, famílias numerosas mostram suas crianças como símbolo de prosperidade enquanto anciãos vão esbanjando sabedoria. Todos participam ao encanto do lugar, mesmo quando o barulho da multidão é pouco a pouco substituído pelos cliques das cameras ou as batidas dos pés nos caminhos de mármore.

Uma das mesquitas do conjunto arquitetural

Uma das coisas mais bonitas do Taj é o espaço que o cerca e que prepara a emoção do visitante. Os prédios anexos são distantes o suficiente para não distrair a atenção do monumento principal, mas são bastantes numerosos e ricos para lembrar a grandeza do Império mogol: várias mesquitas, o túmulo de uma dama de companhia,  outros de principes imperiais. Caminhando entre o canal, as árvores e as cercas vivas, é importante se aproximar devagar do palácio que se ergue entre os minaretes, ainda idêntico a visão do seu criador, como se a perfeição da obra tivesse desanimado os seus sucessores de fazer qualquer mudança ou de adicionar nem que seja uma pedra.

Depois de quase cinco séculos, o Taj Mahal ainda segue intocado

Em todo o monumento, nada distrai o visitante da arquitetura. As paredes, as portas e os pisos são só mármores, alguns especialmente esculpidos, outros combinando cores como se fossem tapetes ou cortinas de seda que o visitante pode acariciar com a mesma sensualidade.  Se tiver a sorte de fazer a visita na época da lua cheia, vale a pena esperar o por do sol quando o mármore quente pega uma cor leitosa, e que os cheiros de tabaco, de lírios e de varas de São José  invadem o pátio. Mesmo se o domo cobra um túmulo, o Taj Mahal não inspira nenhuma tristeza, impressiona ao contrário pela perfeição das vidas que ele comemora. Talvez por isso, esse encontro com uma tal maravilha do mundo e do amor tem que ser preparada e merecida.

Jacques Baschieri

Esse artigo foi traduzido e adaptado de um artigo do Jacques Baschieri  na revista profissional on-line Mister Travel

%d blogueiros gostam disto: