As duas memórias de Montmartre

Dominando Paris, o Sacré Coeur de Montmartre

Dia 12 de Outubro, a Câmara Municipal de Paris aprovou um pedido de tombamento da basílica do Sacré Coeur de Montmartre. Aparentemente técnica, com o objetivo de conseguir verbas do governo para as obras de restauração do edifício, a decisão reabriu uma violenta polémica. Deixando do lado a discussão em volta do estilo romano-bizantino escolhido pelo arquiteto Paul Labadie, que venceu a licitação frente a mais de 70 concorrentes, a briga é antes de tudo política, fruto das divisões entre direita conservadora e esquerda revolucionaria que começaram em 1789 e culminaram em 1871 com a repressão sangrante da Commune de Paris.

Salvar Roma e a França, a esperança de Legentil e Fleury

Se foi no século III que o Monte dos Martírios ganhou esse nome com a morte do bispo São Dênis, a história do Sacré Coeur começou en dezembro 1870. Convencido que a derrota dos exércitos franceses frente aos alemães era  a consequência  dos pecados acumulados pelos franceses desde a Revolução, dois católicos sinceros, Alexandre Legentil e Hubert Rohault de Fleury fizeram a promessa de construir em Montmartre uma igreja consagrada ao Coração de Jesus. Financiado por pequenas e grandes contribuições de quase dez milhões de fieis, o santuário traria o perdão divino e acabaria com as desgraças da França.

O Montmartre dos moinhos, com os canhões da Commune

A guerra civil atrasou o projeto, e ampliou os antagonismos. Estes ficaram mais fortes ainda quando o governo conservador escolheu de dar para construção o exato local onde o povo de Paris tinha iniciado o seu levante. Desde então, o Sacré Coeur ficou associado a ordem moral e a repressão social. Durante toda a construção – que demorou 48 anos-, políticos e historiadores se dividirem entre aqueles que apoiavam mais um voto de fé da França “filha primogénita da Igreja” e outros que achavam que a basílica era uma afronta a memória dos 30.000 parisienses massacrados durante a semana sangrenta de maio de 1871, um rastro através os monumentos de Paris, até os últimos fuzilamentos no cemitério do Père Lachaise.

Frente a basílica, a praça Louise Michel

A decisão da Câmara Municipal de Paris reacendeu o debate entre as duas Franças. Mas mesmo com a ferrenha oposição da esquerda e a incerta abstenção dos ecologistas, o Sacré Coeur é agora monumento historico. Para o reitor da basílica, os 11 milhões de visitantes vão poder aproveitar a decisão com varias melhorias, incluindo a abertura de novos acessos para pessoas com deficiência e a renovação do órgão. Outros projetos deveriam também ser anunciados em breve, ajudando Montmartre a ser inscrita no patrimônio mundial da UNESCO. E para reconciliar ambas as partes, a prefeitura lembrou que a área tombada incluiu a praça Louise Michel, homenagem a mais emblemática heroína da Commune de Paris.

Jean-Philippe Pérol

O Sacré Coeur dominando Paris

150 anos da “Commune”, a controvertida e fascinante história de Paris

O Palácio dos Tuileries teve que ser destruído depois do incêndio

No próximo dia 18 de Março, Paris vai começar a comemorar os 150 anos de uma das mais polêmicas e mais sangrentas páginas da sua história, quando as tropas do governo – os “Versaillais”- venceram os insurgentes “communards”, e fuzilaram mais de 30.000 homens, mulheres e crianças. Último episódio das revoluções patrióticas e democráticas que sacudiram a  França desde 1789, ou primeiro grande levante social da história contemporânea, a “Commune de Paris” ainda divide os políticos franceses, e mesma a saudosa canção “Le temps des cerises“, hino muito tempo proibido, ainda  não faz a unanimidade. Mas a prefeitura aprovou as comemorações, e  vai, até o 28 de Maio, organizar homenagens, palestras históricas, e exposições culturais, sempre adaptados ao contexto sanitário atual.

Louise Michel, ícone da Commune de Paris nos cartazes dos 150 anos

Os eventos têm uma forte dimensão politica, a prefeita socialista lembrando aos moradores que a revolta era democrática e social, e que algumas reivindicações eram surpreendentemente modernas. Além das violências – que provocaram muitas mortes mas também a destruição de monumentos simbólicos como o Palácio dos Tuileries ou a Prefeitura-, a “Commune” foi pioneira na gratuidade do ensino, na separação da igreja e do estado, no divorcio consensual, ou nos direitos das mulheres. Foi por sinal uma mulher icônica, Louise Michel, militante anarquista, combatente da linha de frente, exilada na Nova Caledônia depois da derrota, que foi escolhida no cartaz das comemorações.

A Commune começou nas ruas e nas praças de Montmartre

Vários eventos vão marcar o início da comemorações dia 18 de Março. Em Montmartre, onde a Commune começou, será reconstituída uma barricada e 50 parisienses foram selecionados para trazer 50 silhuetas  de revolucionários realizadas pelo artista  Dugudus. As peças representam personalidades anônimas ou famosas, como a anarquista Louise Michel, o pintor Gustave Courbet, ou o poeta Arthur Rimbaud, e serão depois expostas na Prefeitura. No mesmo dia, será inaugurada uma “Alameda da Ile dos Pins”, com os nomes dos numerosos revoltados, homens e mulheres, que foram deportados para essa ilha da Nova Caledônia depois da liquidação da revolta.

A Ile des Pins, Nova Caledônia, onde foram deportados mais de 3000 revoltados

Várias exposições serão também apresentadas.  O comitê histórico da prefeitura realizou “1871 : les 72 jours de la commune” que começará no bairro das Buttes Chaumont, depois continuará na biblioteca da Sorbonne e enfim  no Marais. Uma coleção de cartazes da época, batizada “A l’assaut du ciel” será exposta  em 20 escolas parisienses. São previstos espetáculos de rua da tropa artística nos principais bairros simbólicos da Commune, bem como vários roteiros turísticos acompanhados de guias, organizados pelas subprefeituras de Paris. Em parceria com associações, uma mapa interativo apresentará locais e personagens, conhecidos ou não, que tiveram um papel nos eventos da época.

A Praça de l’Hotel de Ville, lugar chave das comemorações

Alguns eventos serão encenados para atrair moradores e turistas. Dia 2 de Abril será reconstruído na frente da Prefeitura o julgamento da anarquista Louise Michel, com historiadores opondo os argumentos dos “Versaillais” e dos “Communards”. Se as condições sanitárias melhoraram, o julgamento será retransmitido em uma tela gigante na praça do Hotel de Ville, e os debates serão seguidos de de leituras e de cantos. Dia 28 de Maio, aniversário do último dia do levante, será realizado um espetáculo de sons e luzes “Le Pari de la Commune” na rua de la Fontaine du Roi, 17.  No mesmo lugar aonde tinha sido erguido a última barricada, comediantes e músicos encenarão  o final desse drama, parte da tão peculiar historia que faz de Paris uma cidade única.

Jean-Philippe Pérol

O Sacré Coeur, símbolo controvertido da derrota da Commune